Antes de começar por dizer o que quer que seja convém dizer o que se passou desde o último post.
Depressão e não há muito a dizer.
As causas foram muitas para que chegasse ao que cheguei, mas cerca de dois meses volvidos, começo a perceber o que efectivamente de errado se passa e no que depender de mim vou fazer o que puder para lutar contra isto e fazer não só do mal a cura mas também a luta da minha vida.
O meu maior medo. O cancro.
Desde que me conheço por gente que sinto uma angústia dentro de mim. Apesar de ter tido uma infância maravilhosa, sempre senti que algo, a qualquer altura, poderia vir abalar a felicidade que eu sentia.
Das várias hipótese que ia considerando, na tentativa de iludir a que era real, nenhuma me causava o impacto daquele temor. O medo da morte. O medo da morte da minha mãe.
Só o pensamento era aterrador. Quando era criança era muito apegada à minha mãe, ainda hoje sou, mas naquela altura a minha mãe era o meu mundo. Se ela desaparecesse eu ficaria desamparada e só de considerar a hipótese começava a sentir aquela dor que me apertava o peito e me sufucava sem piedade. Quando isso acontecia chorava imenso, por vezes até no colo dela. Com muito mimo e beijinhos a dor lá acabava por passar mas sempre temporariamente.
Quando comecei a crescer essa sensação de tormento dissipou-se graças muito em parte à parvoeira que é a fase da adolescência. No entanto, com o passar do tempo e com o despertar para o mundo real, percebi que existia uma doença que aterrorizava às pessoas de tal forma que nos meios mais pequenos o cancro é habitualmente denominado como "um mal ruim".
É sem dúvida o Voldemort das doenças e creio que as pessoas não dizem o nome da doença para evitar que esta se chegue perto delas.
Demorei bastante tempo para perceber o que era o malfadado "mal ruim" mas sabia que esse sujeito já tinha rondado de perto a minha família.
O meu avô paterno faleceu vítima de cancro na próstata tinha eu quatro anos e a morte dele marcou para sempre o meu pai.
Alguns anos mais tarde, calculo que eu tivesse cerca de dez, onze anos, foi a vez de uma irmã da minha mãe sucumbir a um cancro no pâncreas.
Aconteceram outros casos igualmente fatais na família, não em parentes directos, mas ainda assim sempre consegui detectar a consternação e terror no olhar das pessoas na hora de serem prestadas as últimas homenagens.
Com o passar do tempo acabei por interiorizar que quem tivesse "um mal ruim" estava condenado mas nunca considerei que tal tragédia acabasse por atingir a minha família directa até ao dia que numa reportagem na televisão estavam a falar sobre o cancro na mama.
Gelei! Fiquei a ouvir até ao final com muita atenção e nesse momento soube que aquilo ia acontecer. Até hoje não percebo o porque motivo pelo qual tive essa certeza mas o que é certo é que uns anos mais tarde se iria revelar numa fatal verdade.
A partir desse dia passei a ler com o máximo interesse tudo o que estivesse relacionado com cancro. Panfletos, cartazes nos consultórios médicos, reportagens em revistas da especialidade enfim. Tinha necessidade conhecimento para de alguma forma me poder previnir, ou até mesmo defender do mal que eu sabia estar para vir.
Fiz sempre questão que a minha mãe fosse religiosamente às consultas ginecológicas de rotina e que fizesses os respectivos exames de diagnóstico. Estava sempre tudo bem.
Entretanto os anos foram passando, eu cresci e vim para a Universidade. Apesar da distância não me afastei dos meus pais muito pelo contrário, a saudade constante aproximou-nos ainda mais.
Conheci várias pessoas, novas culturas, adoptei uma outra postura, no entanto nunca fui capaz de me livrar daquela maldita angústia que a toda a hora me gritava que tudo o que eu fizesse era temporário e em vão. Demorei muito tempo para me concentrar nos estudos e progredir na vida académica.
O ano em que resolvi ignorar a voz e fazer face aos meus próprios medos foi o ano que a a minha vida mudou para sempre mas também, por ironia, o mais brilhante na faculdade
Lembro-me como se fosse hoje, que na casa onde eu tinha um quarto alugado, vivia também uma rapariga de Portimão que estava em Lisboa a tirar o curso de Administração Hospitalar. Conversávamos muito e a I. era uma pessoa de quem eu gostava bastante.Numa das nossas longas conversas nocturnas ela falou-me sobre o tema do trabalho final que tinha que apresentar para conclusão do curso que era nada mais nada menos que um estudo sobre o aparecimento de cancro na mama em mulheres que faziam a terapêutica hormonal durante a menopausa. A minha mãe estava a fazer essa terapêutica... Fiquei muito preocupada e ansiosa.
Assim que fui a casa passar o fim de semana falei com a minha mãe sobre o assunto e combinámos falar com o ginecologista dela na próxima consulta só para aliviar a consciência dado que a maior parte dos médicos são contra esse tipo de medicação.
Fomos à consulta, na qual expusemos essa questão ao Dr. V o qual riu dizendo que: "estes comprimidos são uma maravilha. As mulheres nem velhas ficam! Tomaram os homens quando chegam à Andropausa ter um tratamento assim que ficam velhos e com as peles descaídas. Além disso as análises estão óptimas e tem aí uma pele lisinha sem rugas!"
Quem fala assim não é gago, como diz o ditado, e por algum tempo sosseguei. No entanto, com o passar do tempo outros sinais iam despertando a minha atenção como a palidez esverdeada da minha mãe, o cansaço extremo que ela sentia após tarefas aparentemente simples, um apetite voraz mas uma crescente perda de peso para além daquela pregazinha que lhe apareceu no seio esquerdo e que chegámos a comentar mas sem dar especial atenção.
No dia 30 de Agosto de 2002 a minha mãe foi fazer a mamografia de rotina a Coimbra e o meu mundo ruiu.
Se há episódios que não se apagam da minha memória, esse é sem dúvida um deles dado que tal foi a intensidade do choque que sou ainda capaz de descrever em pormenor tudo o que se passou naquela tarde.
A minha mãe foi chamada para a mamografia e eu fiquei com o meu pai na sala de espera a ler um artigo da Visão sobre o perfil dos incendiários de Verão. Confesso que estava interessadíssima de tal maneira na leitura que nem dei pelo tempo passar. Só quando o meu pai, pálido me diz para ir ver da minha mãe pois já estava demorada é que despertei.
Pousei a revista e percorri o corredor em L da clínica até chegar a uma outra sala de espera destinada a quem ia fazer exames onde me deparo com a minha mãe a fitar o chão e a roer nervosamente uma unha.
Perguntei-lhe o que se passava ao qual ela balbuciou alguma palavras sem nexo e quando por fim me encarou, tinha os olhos arregalados de pânico e diz: " Viram qualquer coisa, mandaram-me repetir o exame. Quando o médico vier cá fora vai falar com ele."
Dito isto calou-se voltou a fixar o chão. Fiquei junto dela mas sem me sentar. Sentia-me tonta. Passados alguns minutos abriu-se uma porta e saiu o médico com o exame na mão para entregar à minha mãe. Antecipei-me para ser eu e receber o envelope,apresentei-me e perguntei-lhe se se passava alguma coisa ao qual ele respondeu: " Venha comigo!". E eu fui.
Fui a ziguezaguear por entre corredores repletos de portas de vestiários até chegar ao gabinete dele. Assim que abriu a porta e me mandou entrar tive que semicerrar os olhos porque estava inundado de luz.
Não fui convidada a sentar-me e sem grandes predicados o médicos em resposta à questão que eu lhe havia colocado - O que é que se passa com a minha mãe? - me diz que ela tem um nódulo na mama esquerda que tem que ser removido com urgência.
Fiquei completamente aparvalhada. De tal forma que não registei o que ele disse e inocentemente pergunto: " Um nódulo? Um caroço? Pode ser um gânglio sebáceo....".
A resposta foi dita como uma sentença mas que ainda assim não compreendi: " A sua mãe tem um cancro que deverá ser retirado o mais rápido possível. Tem que consultar o ginecologista que a encaminhará para o IPO para fazer o quanto antes uma biópsia para se detectar se é benigno ou maligno."
Ainda tentei colocar mais algumas questões mas sem grande sucesso visto que eu própria não conseguia articular palavras nem tão pouco ouvir o que estava a dizer.
Sem grande demora conduziu-me à saída do seu consultório e assim que a porta se fechou tive a noção que não fazia a mais pequena ideia do caminho de volta.
Ao mesmo tempo desejei que assim fosse. A última coisa que eu queria naquele momento era encarar os meus pais, em especial a minha mãe.
Comecei a andar aos tropeções, a sentir falta de ar e em pânico porque não sabia como sair dali. Instintivamente enquanto caminhava ia abrindo todas as portas que me surgiam pela frente na esperança que alguma fosse a certa e me tirasse daquele maldito labirinto.
Finalmente abri a porta certa e mesmo em frente estavam os meus pais. Fechei a porta atrás de mim e quando me dirigi a eles pedi-lhes que fôssemos embora.
Saí na frente deles. Sozinha. Precisava de pensar. Precisava de arranjar um plano, uma estratégia para não dar seguimento ao que tinha ouvido e acima de tudo precisava de sair dali.
Ao atravessar o átrio do prédio até à porta de saída reparei o sol essa tarde tinha um brilho amarelado doentio. Era um daqueles dias quentes de final de Verão nos quais o sol se começa a despedir e perde o brilho radiante do Julho para uma luz cansada e doente.
Cheguei finalmente à rua sem qualquer plano definido. Os meus pais vinham imediatamente atrás de mim e pediram-me para parar.
Encostados a um muro disse-lhes apenas que a ida deles para a Suiça teria que ser adiada visto que a mãe tinha que fazer uma biópsia o quanto antes.
O desespero instalou-se mas o silêncio foi mais forte e percorremos o trajecto até ao carro no mais absoluto silêncio. Chegados ao carro, a minha mãe pediu-me para ir no banco de trás. Eu disse de imediato que sim, mas não sem antes guardar bem o envelope com o resultado do exame dentro da minha bolsa.
Pouco depois de entrarmos no carro ela deixou-se dormir. O meu pai conduziu calado até casa e eu desejei mais que nunca que tivéssemos um acidente no qual morressemos os três só para não ter que dizer à minha mãe que ela tinha um cancro.
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Dizei de vossa justiça minha gente :)