terça-feira, 23 de março de 2010

A primeira espera.


Nunca me custou tanto o tempo a passar. Um mês teve a duração de uma eternidade.
Não sabia o que pensar. Ainda estava de férias e as aulas começavam a aproximar-se.

Na minha cabeça havia apenas uma questão. O que vai acontecer a partir daqui?

Foi um período de tempo curto, mas horrível. Havia dias em que a minha mãe estava calma e em que acreditava genuinamente que tudo não passava de um grande susto, outros porém, o desespero instalava-se e era o caos. Choro, nervos, gritos... Uma tristeza.
O desespero é triste e cobarde.

Até que um dia o telefona toca. Eu estava sentada na cozinha e foi a minha mãe que atendeu. A notícia era agridoce. A biópsia não acusava células cancerígenas mas o médico queria repetir para ter a certeza absoluta.
Eu, no entanto tinha a certeza que aquele resultado estava errado! Algo dentro de mim disse: Não é verdade!

Na semana seguinte lá estávamos nós em Coimbra para ela repetir a malfadada biópsia. O que eu não sabia é que esta iria ser um pouco diferente da anterior.
Estivemos algum tempo na sala de espera até chamarem a minha mãe e ela estava, apesar de tudo, bastante relaxada. Eu também, pensávamos ambas que a natureza do exame seria igual ao anterior.

Alguns minutos depois ela é chamada e eu fico na sala de espera, mais uma vez sozinha pois o meu pai simplesmente desaparecia nestes momentos. Quem pode culpá-lo? Eu não. Aliás até apreciava mais a solidão em que me perrmitia abstrair totalmente evitando desta forma conversas de circunstância visto que a fragilidade de ambos não nos permitia falar frontalmente sobre o assunto que mais nos atormentava.

O meu tempo era passado a jogar no telemóvel para esquecer que estava dentro do Hospital do Cancro. IPO. Qual IPO? É apenas uma sigla pomposa para esconder o verdadeiro propósito da existência daquele Hospital que só trata cancros. CANCRO. CANCRO. CANCRO. Merda! É o que tenho a dizer sobre isto. Merda para o cancro e merda para as relações humanas que de tão ricas enfraquecem o ser.

O cancro é o meu maior inimigo e o meu maior medo. Estou farta de sentir medo. estou farta de caminhar na sombra da esperança que ele não me encontre. Tenho MEDO!!! MEDO!!!! Tenho medo que este sacana me roube as pessoas que eu amo. Gostava de sentir ódio para ganhar alguma força mas não consigo. Sinto-me esgotada.
Esta experiência que relato foi a primeira e traumatizou-me para sempre. Nunca mais fui a mesma pessoa e nunca voltarei a recuperar. Tudo o que eu possa vir a ser daqui para o futuro, será sempre uma pálida lembrança daquilo que eu era. Mas o que está feito feito está e não há volta a dar.

Estive seguramente a jogar Snake no telemóvel durante quarenta minutos até que o gongo se fez sentir na minha cabeça. Porra! Tanto tempo! Como é possível?

Esperei, desesperei e chorei. O que é que raio se estava a passar? Eu queria a minha mãe! Apeteceu-me apertar o pescoço à primeira pessoa vestida com farda de Hospital que me apareceu pela frente mas como é óbvio não o fiz. Essas coisas só costumam resultar nos filmes.

Alguns instantes depois a porta abre-se. Era ela. Pálida como cal de parede. Tinha um braço ao peito. Olhou para mim emitindo um pedido de socorro. Levanti-me num pulo e corri para a amparar. Assim que os meus braços a envolveram deixou-se descair e desmaiou-me nos braços. Carreguei a minha mãe até à saída para que o ar fresco a pudessse despertar.

Quando finalmente apanhou ar fresco no rosto, gemeu mas para minha felicidade disse que queria comer.
Seja feita a sua vontade. Fomos até ao bar, com ela já a caminhar e tomámos então o pequeno almoço. Devo ressalvar alguma coisa boa dos tempos de grande frequência hospitalar. Os croissants daquele bar eram no mínimo DIVINAIS!!!
Como ela estava com o braço ligado fui eu que lhe dei a comida mas ela pouco melhorou.

Só quando saímos do Hospital CANCRO é que ela disse o que tinha acontecido no bloco cirúrgico onde decorreu a biópsia. Em termos extremamente leigos explico: a biópsia que foi feita para dissipação de quaisquer dúvidas tinha sido muito mais agressiva e invasiva. A sangue frio, sem anestesia, foi feito um corte na mama de forma a alcaçar o tumor e retirar tecido do mesmo. Ou seja, a minha mãe foi cortada a sangue frio sem anestesia para que pudesse ser recolhida uma amostra do tumor para análise.

O corte era bastante profundo e a quantidade de tecido removida era impressionante.

Após o pequeno almoço tomámos o regresso a casa. Como um azar nunca vem só, para além de estar um calor abrasador e a minha mãe estar impaciente com dores, o carro resolve avariar perto das Caldas de Felgueiras.
Acho que foi o radiador do carro que estava a dar o berro. Seja como for, foi muito complicado chegar a casa visto que o meu pai estava possesso, a minha mãe desligou com as dores e eu sentia-me perdida no espaço e no tempo sem saber o que fazer.

Pela minha cabeça só passavam ideias de morte, pois para mim era a única escapatória possível que estava livre de qualquer tipo de sofrimento. Nunca me tinha sentido sentimentalmente encurralada e não estava ser nada agradável. Eu só não queria perder a minha mãe mas no meio de tanta incerteza e sem qualquer indicação do caminho a seguir a morte de todos nós parecia o mais lógico e menos doloroso.

Foi nessa altura que aprendi que a vida tão depressa é mãe como madrasta e que assume um dos papéis conforme a necessidade de ensinamento. Eu precisava de crescer. Mas só percebo isso agora.
Para mim nessa altura a puta da vida foi mesmo madrasta. Mas enfim!
Suponho que tenha aprendido algo como a brevidade da vida e com a importância dos sentimentos. O facto é que me tornei numa pessoa medrosa e instável que neste momento tem medo até do próprio ar que respira. Quando é que este tormento vai acabar??? Quando? Preciso de deixar de sentir medo.

Seja como for, o meu pai lá conseguiu por o carro a trabalhar e conseguimos chegar a casa.

A partir desse dia assumi o controlo total da casa. Todos os afazeres domésticos estavam por minha conta e fazia questão que assim fosse. O objectivo era apenas um: a recuperação rápida da minha mãe.

Não sei se foi devido ao descanso, se devido ao regime alimentar que implementei lá em casa, ou se pelo carinho recebido o que é facto é que a minha mãe recuperou rapidamente. De cada vez que ia fazer o penso ao Centro de Saúde as enfermeiras ficavam espantadas com a velocidade que a ferida estava a sarar. Isso deixava-me feliz.

Entretanto estava-se a chegar a altura de voltar às aulas. Sei que entretanto vim a Lisboa fazer a matrícula mas não me recordo de nada.

O regresso a Lisboa, ao contrário do que era habitual, estava a deixar-me tensa e muito irritada. Não queria voltar mas também não queria estar ali embora não me sentisse capaz de abandonar a minha mãe enquanto mais uma vez esperávamos pelo resultado definitivo.

Ainda assim, no final de Setembro os meus pais vieram trazer-me a Lisboa, coisa que só tinha acontecido no primeiro ano de Faculdade.

Quando os vi partir senti-me livre por alguns instantes mas assim que caí em mim, senti uma tristeza invadir-me o corpo que tomou conta de mim de tal forma que durante cerca de duas ou três semanas passava o tempo em casa de pijama e ver televisão e a dormir.
Sentia-me morta.

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Dizei de vossa justiça minha gente :)