sexta-feira, 16 de abril de 2010

A Sentença.


Por muito que tente nunca conseguirei explicar o que senti durante aquela viagem.

A tristeza era o sentimento dominante mas estava também muito revoltada com a vida e especialmente com o rumo que a situação estava a tomar.
A minha vinda para Lisboa, quando tinha 18 anos, marcou a minha entrada na vida adulta, o meu crescimento pessoal, sentimental e ajudou em grande parte a fazer de mim o que sou hoje.

No entanto Lisboa signicava acima de tudo a minha independência. Saí de casa dos meus pais directamente para a grande cidade e pela primeira vez na vida estava por minha conta e risco.
Tudo o que fizesse teria consequências e fossem elas boas ou más só eu era responsável.

De início reconheço que foi duro. A saudade dos pais e do conforto do lar onde cresci eram muitas mas foi a capacidade de gerir esses sentimentos que me fez crescer e amadurecer. A partir do momento que o fiz comecei a aproveitar e a tirar partido de tudo quanto esta cidade tinha e continua a ter para me oferecer.

Lisboa é uma cidade linda.


Por muito deprimida ou por muito mal que esteja, nada me faz tão feliz como deambular sem destino pela cidade, descer a Avenida da Liberdade e subir ao Chiado para tomar um café na Brasileira, olhar durante horas a fio para a Ponte, deslizar pelo rossio até ao Martim Moniz e desfrutar daquele ambiente repleto de diferentes culturas e cheiros.

Além disso, nada supera aqueles dias especias, que pela magia que têm, se tornam irrepetíveis por serem plenos de fascínio.

Os solarengos dias de Outono em que a cidade está envolta por um ténue nevoeiro adocicado do cheiro inconfundível das castanhas assadas.

As noites quentes de Verão e o aroma quente das sardinhas assadas vindo dos bairros castiços.

As tardes de Primavera onde se pode sentir o pulsar do coração de uma cidade que desperta para os dias de calor que se aproximam.

As manhãs de Inverno em que se sente o ar fresco e húmido do Tejo que se infiltra nas narinas e faz despertar o corpo para mais um dia de trabalho.

Os monumentos, que pela sua grandiosidade e beleza que me transportam para tempos e locais remotos e me proporcionam viagens fantásticas no espaço e no tempo interrompidos apenas pelo som inconfundível do deslizar do eléctrico pelos carris.

Como diz o poeta: "É esta Lisboa que eu amo!".


Todos estes sentimentos me acompanhavam na viagem de regresso a casa e por isso era imposível conter as lágrimas. No entanto, chorava também porque a minha mãe estava doente e precisava de todo o apoio e carinho que eu lhe pudesse dar e acima de tudo porque não a queria perder.
Chorava pela incerteza do futuro e chorava com medo do desconhecido.
Chorava acima de tudo com medo da morte que por esses dias ocupava a minha mente.

Não tenho qualquer memória da chegada a casa nem dos primeiros dias que lá passei. Recordo-me apenas do sentimento de alívio que tive inicialmente por estar junto da minha mãe e por sentir que o que estava a fazer era o correcto.

Sei apenas que os dias foram passando até irmos novamente a Coimbra à consulta que iria determinar o destino próximo da minha mãe e a partir daí sim, tudo quanto aconteceu está gravado na minha memória.
Assim que foi dito que o tumor era maligno, tanto os meus pais como eu nos mentalizámos que o mais provável seria a minha mãe avançar para tratamentos de Quimioterapia antes da operação.

A primeira coisa que ela disse foi que caso isso acontecesse, antes mesmo de começar os tratamentos iria rapar o cabelo para não passar pela humilhação de o ver cair.
Apesar de ter concordado com a decisão dela não queria pensar sobre isso.

A consulta foi, tanto quanto me consigo recordar, em finais de Outubro. Estava uma tarde chuvosa e um nevoeiro denso. O ambiente estava de cortar à faca.
Ao contrário das vezes anteriores não foi preciso dar entrada para as consultas e fomos encaminhadas para um outro piso.

Ao chegar lá, percebi que esse piso era o dos gabinetes de reuniões.

Os gabinetes não eram mais que salas com a mesma dimensão dos consultórios com a diferença que as mesas eram ligeiramente maiores e as paredes eram envidraçadas.
Sentámo-nos à espera, de frente para um gabinete onde estava a decorrer uma reunião e durante alguns minutos fiquei a observar o grupo de médicos que lá estava reunido.

Cá fora não se ouvia rigorosamente nada.

O que eu observava eram as expressões faciais de cada um deles. A conversa decorria serenamente entre eles, não havia qualquer sinal de agitação nem tão pouco de exaltação no entanto o cenário era para mim extremamente interessante até que finalmente percebi porquê.
Ninguém naquela sala estava a sorrir. Todos tinham a mesma expressão facial.
O mesmo semblante carregado de quem está a decidir o rumo de vidas humanas que se encontram no limiar da vida e da morte e eles, apenas mortais, estavam a tomar decisões de Deus.

Ao aperceber-me disso fiquei transtornada e tentei desviar o olhar mas não conseguia.
Resolvi então analisar cada um dos médicos e tentar descobrir qual deles é que iria falar connosco e dizer de sua sentença.

Acabei por desistir visto que estavam cerca de dez pessoas dentro da sala e podia ser qualquer um.

Cerca de trinta minutos depois, dou por mim já dentro de uma sala a falar com um médico, que juro não saber se estava naquele grupo ou não, e as notícias eram estranhas.
A minha mãe não tinha que fazer quimioterapia nem radioterapia mas ia ser feita a cirurgia para remoção de todo o tecido mamário esquerdo, tecnicamente uma Mastectomia.

Quando? Ninguem sabia dizer!
Ia ficar em lista de espera pois apesar de o tumor dela ser maligno era "apenas" Grau 1 e todos os casos mais urgentes tinham prioridade.

Posto isto, saímos em silêncio e a minha mãe começou a chorar. O meu pai assim que a viu desapareceu à nossa frente posivelmente também para poder chorar.
Curiosamente eu não deitei uma lágrima mas hoje percebo que ao longo do processo fui mudando a minha escala de medos.

Ou seja, a partir do momento que soube que a minha mãe tinha cancro todos os dias à noite, na privacidade do meu quarto, chorava até adormecer para não o fazer em frente à minha mãe.
No início chorava e pedia para que ela não morresse, não tivesse que tirar o peito, não lhe caisse o cabelo.
Com o passar do tempo queda de cabelo e ausência da mama foram saindo das minhas preces naturalmente.

A partir do dia que soube que a minha mãe ia ser operada, passei a pedir apenas que ela vivesse para poder aproveitar um pouco mais a vida dela, coisa que nunca fez até adoecer.

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Dizei de vossa justiça minha gente :)