A partir do momento em que dizem: "Pode ser chamada a qualquer momento!", acaba-se o sossego.
Por muito que se queira ou tente agir naturalmente, tudo vai por água abaixo com o simples tocar do telefone ou com a chegada do correio.
Os dias passavam lentos e as horas pareciam intermináveis.
Depois daquela última consulta nada mais havia a fazer. Tudo o que havia para ser feito ou dito já estava.
Restava agora uma espera indeterminada.
Durante esse tempo, apesar da espada que sentia sobre a cabeça, os dias decorriam dentro de uma normalidade à qual não estávamos habituados.
O meu pai andava bastante nervoso, passava bastante tempo fora de casa a trabalhar e quando estava em casa não falava sobre o assunto.
Eu adoptei o método de, durante o dia com a minha mãe andar sempre hiper activa e bem disposta. À noite, na privacidade do meu quarto libertava todas as minhas frustrações em intermináveis horas de choro. Normalnemte adormecia assim. Todos os dias rezava para que tudo corresse bem. Houve dias em que de facto acreditei que as minhas preces estavam a ser ouvidas mas havia outros que é impossível esquecer.
A minha mãe ora andava apática ou fazia de conta que estava normal. Claro que o que existia era uma enorme fragilidade que um simples sopro podia abalar a qualquer instante.
Os momentos de fraqueza da minha mãe perturbavam-nos a todos, não só porque a víamos em desespero mas também porque despertava os nossos próprios receios.
Houve um dia em particular, julgo que já em meados de Novembro, que me ficou guardado na memória, não pelo que foi dito, não pelo que se passou, mas sim pelo que senti.
Já tinha passado cerca de um mês e meio desde a última consulta e não havia qualquer notícia por parte do IPO. Durante esse tempo muitas coisas passam pela cabeça, boa e más, mas também muita gente opina da pior maneira possível.
Sempre que saíamos à rua e éramos abordadas por alguém que já sabia da "grande tragédia" era um desastre.
Toda a gente tinha uma história para contar de um familiar ou alguém conhecido que tinha tido cancro e faziam questão de relatar tudo ao mais ínfimo pormenor.
A maior parte destas histórias terminavam com a morte da pessoa em questão e sempre que isso acontecia eu via a cara da minha mãe fechar-se de preocupação e medo.
Nunca na vida tive que controlar tanto os meus instintos de fúria. Só me apetecia esbofetear todas aquelas pessoas e mandá-las morrer longe de mim.
Ainda hoje vejo a maior parte dessa gente como abutres.
De qualquer forma esses episódios tinham sempre consequêcias negativas na minha mãe e era muito complicado conseguir dar novamente a volta à questão.
Todos os dias eu fazia questão de ter tempo para o discurso positivo de mentalização e de perspectivar o futuro.
Esse dia, porém, não funcionou. Estávamos só as duas a almoçar e subitamente os pratos voaram da mesa e a minha mãe tem um ataque de pânico/fúria incontrolável.
Chorou, gritou, desesperou... Fez tudo a que tinha direito.
O tempo estava a passar e ela só queria que tirassem "aquilo" de dentro dela. Quanto mais o tempo passava pior. Como ela costumava dizer: "Na demora é que está o perigo".
Completamente transtornada, ligou para o IPO e falou com alguém tal como se estava a sentir e a pensar no momento.
Eu não aguentei estar a ver a cena e fui para o meu quarto e foi o que senti que me marcou.
Senti uma pena enorme da minha mãe e uma espécie de vergonha por ela ter perdido a compustura daquela maneira a ponto de ligar para o IPO a gritar.
Senti pena dela porque sabia que ela não queria morrer. Eu não queria que ela morresse. Senti-me envergonhada por ela estar a ligar naquele pranto para o Hospital. Senti resignação. E senti vergonha de mim mesma por me estar a sentir assim.
Ainda assim, continuei no quarto tempo suficiente para arranjar coragem de a encarar novamente.
Quando voltei para junto dela, disse-me que devido à conversa que teve com o IPO a tinham colocado numa lista de espera de desistências.
Fiquei sem perceber mas ela apressou-se a explicar.
Estávamos a aproximar-nos do Natal e apesar da época as cirurgias continuam. No entanto, há muitas pessoas que são chamadas e desistem porque recusam ser operadas naquela quadra festiva.
Eu considero isso uma estupidez porque afinal de contas, com que espírito é que uma pessoa está em casa com a família a saber que tem o "diabo" no corpo e que só por ser Natal e Ano Novo desistiu da operação que a pode salvar e sem perspectiva de uma nova data?
Enfim, cada um é que sabe.
Tenho que confessar que de início tive um baque mas depois não liguei e pedi a todos os santinhos para que ela fosse chamada. Foi esse o meu pedido para presente de Natal.
A partir desse dia as coisas serenaram um pouco e a rotina do dia a dia continuou.
Entretanto fiz 23 anos e para o Natal já só faltavam dez dias. Não havia quaisquer notícias.
O desespero voltava a instalar-se.
Até que numa manhã o telefone tocou e eu atendi.
Identificaram-se como sendo do IPO e perguntaram se estavam a falar com a minha mãe. Como a senhora do outro lado da linha parecia estar com alguma pressa disse que era eu. Do outro lado ouvi: "Houve uma desistência de cirurgia para dia 27 de Dezembro. Aceita?"
Imediatamente assumi a vontade da minha mãe e disse que sim. A senhora continuou: "Tem que se apresentar no IPO dia 26 de Dezembro às 11h da manhã para internamento."
Voltei a dizer que sim e terminou a chamada.
Sentei-me no sofá com uma sensação estúpida no peito. Era um misto de euforia e pavor.
Se por um lado estava contente por a terem chamado para ser operada, por outro seria o prosseguir do pesadelo. Ignorei os meus sentimentos e fui à procura da minha mãe pela casa.
Ela vinha a descer as escadas que dão acesso ao sótão e estava a sorrir. Engoli em seco e disse-lhe.
Reagiu exactamente como eu. É uma experiência única, verdadeiramente agridoce.
Já faltavam poucos dias para o Natal e para a operação. O que fazer?
Ceder ao medo e entrar novamente no turbilhão de pavor do desconhecido, ou adoptar a quadra Natalícia para fugir ao que se aproximava?
Nesse mesmo momento fui ao sótão e trouxe todas as tralhas decorativas e meti mãos à obra. Andei horas naquilo. A certa altura até a minha mãe se entusiasmou e começou a pendurar enfeites por todo a lado, nas portas da rua e de casa, nos candeeiros, nas paredes... Uma loucura. À noite, quando acendemos a iluminação e vimos o espectáculo montado rimos que nem duas perdidas. Estava demais.
Nunca mais voltámos a fazer uma coisa assim!
Depois disso os ânimos serenaram mas a preocupação começou a dominar a situação aos poucos e o dia de Natal foi como se não tivesse existido.